Uma mulher vitima de violência doméstica passa por um periodo conturbado.
Não é fácil ir a uma delegacia e denunciar o companheiro, possivelmente pai de seus filhos, aquele que um dia foi o amor da sua vida:
O medo de ser julgada, do que pode acontecer com o agressor, a sensação de impunidade e de estar desprotegida impedem a formalização de um boletim de ocorrência e a entrada da Justiça no caso.
Quem está sofrendo violência física, ainda que não esteja em condições de procurar a polícia, acaba buscando o sistema de saúde.
Nos hospitais, chegam mulheres com braços quebrados, olhos roxos, marcas de espancamento, cortes e queimaduras.
E também as que sofrem de insônia, dores crônicas e depressão decorrentes do contexto de violência no qual estão envolvidas.
Só no primeiro semestre de 2019, até a última atualização da Secretaria de Saúde do DF, em 08/07/2019, 648 vítimas foram atendidas pelos hospitais e policlínicas da capital federal — no mesmo período, em 2018, o número foi de 254.
“A violência doméstica cria um problema de saúde, o impacto físico e emocional é muito grande. No DF, desde 1997, começamos a estruturar uma rede de projetos para atender essas vítimas, e foi quando começou o PAV (Programa de Assistência à Violência), no HMIB.
Hoje temos 15 centros espalhados pela cidade, todos com nome de flor”, explica Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav) da Secretaria de Saúde do DF.
Cada PAV conta com psicólogo, assistente social, enfermeiro e médico especialista para atender não só as vítimas de violência doméstica, mas também crianças e adolescentes que foram abusados sexualmente ou idosos em situação de negligência.
A ideia é que o profissional atenda a mulher na emergência ou na atenção primária e a encaminhe para o centro especializado, onde ela receberá acompanhamento por, no mínimo, seis meses — por isso, os PAVs ficam localizados nos hospitais e policlínicas do Distrito Federal.
Não é necessário registrar boletim de ocorrência.
No Brasil, desde 2011 o profissional de saúde que atende uma mulher e suspeita que ela tenha sido vítima de violência doméstica é obrigado a preencher uma ficha de notificação e encaminhar para a secretaria de saúde do seu estado.
O objetivo é oferecer informação para que o governo entenda a situação em tempo real e possa organizar maneiras para combater o problema.
“O PAV hoje é a nossa principal estratégia porque a violência não tem outro meio de controle se não a mudança dessa questão sociocultural. Não há vacina ou remédio que resolva a violência doméstica.
Devemos apostar nos recursos humanos, acolher a mulher e a família e trabalhar toda essa questão de violência”, conta Fernanda.
Fernanda diz que, pela vivência nos hospitais, percebe que o crime de tentativa de feminicídio é diferente.
São facadas infligidas diversas vezes e queimaduras, e os ataques acontecem em áreas vitais e que dizem respeito à feminilidade da mulher.
Rosto, partes íntimas e mamas são algumas das regiões mais afetadas. “As equipes têm se desdobrado para atender. Nesses casos, em especial, o suporte tem sido para a família, os filhos, irmãos e mães.
Uma vez que ela sobrevive ao ataque, fazemos o acompanhamento”, conta a chefe do Nepav.
Ela lembra ainda que, em vários casos, se descobre que a mãe sofre violência doméstica quando o filho chega ao hospital com sinais de maus tratos.
Por isso, é essencial capacitar o profissional de saúde para reconhecer e notificar corretamente quando estiver de frente para um caso — ela considera, inclusive, que o aumento no número de vítimas atendidas de 2018 para 2019 aconteceu pela maior sensibilização da equipe quanto ao tema e a cursos de especialização promovidos pela Secretaria. “Elas sentem vergonha, são resistentes, a ideia é que o profissional saiba reconhecer e reagir.
Uma paciente, por exemplo, chegou com o braço quebrado e chorava compulsivamente, as lágrimas corriam o tempo inteiro, e ela não conseguia falar uma palavra.
Quem atende precisa saber conversar com ela, mostrar que há opções, que existe todo um aparato do governo para protegê-la”, diz.
O hospital só aciona a polícia no caso de lesão corporal grave, que coloque a vida em risco ou incapacite a vítima de algum modo, como facadas e tiros.
Um próximo passo é colocar essa atenção especial também no pré-natal: gestantes estão no grupo de risco de violência doméstica.
No PAV, a mulher em situação de violência recebe apoio para se recuperar e reabilitar a saúde emocional.
Em encontros de grupo ou individuais, ela conversa com outras pessoas que passam pelo mesmo problema e participa de atividades organizadas pelo grupo.
O PAV Flor de Lótus, em Ceilândia, promoveu, por exemplo, um passeio ao cinema. “Algumas nunca tinham ido antes.
Esse passo, que parece pequeno para a gente, para elas é empoderador, mostra que é possível viver de maneira diferente.
Estamos organizando passeios aos pontos turísticos de Brasília para tirá-las da situação um pouco, quebrar aquela barreira, entender que podem ter e ser mais.
Dá medo estar na violência, mas dá muito medo sair também”, explica Fernanda.
Via- Metrópoles