[dropcap]E[/dropcap]m entrevista exclusiva ao editor do Nocaute, Fernando Morais.
O governador do Maranhão, Flávio Dino, do PC do B, falou sobre o governo Bolsonaro, os desafios de governar o estado diante de um governo federal sectário e excludente, a união com os outros estados nordestinos, a Base de Alcântara e a possibilidade de se candidatar à Presidência da República.
FM: Imediatamente depois de sua vitória e das outras vitórias, os senhores criaram um consórcio de governadores do Nordeste, os nove governadores dos nove estados. Com o objetivo, fundamentalmente, de reduzir custos, um pouco compartilhar as dificuldades, que são muitas, mas é inevitável que se transforme em um consórcio político também. Parece que ontem já houve uma manifestação de vocês com um documento de repúdio ao decreto de liberação de armas. Em que medida o senhor acha, porque o Brasil que não soube votar olha com muita esperança para o Nordeste, em que medida o senhor acha que o Nordeste pode se tornar uma referência política mais forte agora a partir dessas eleições?
FD: Prazer, Fernando. Obrigado pela sua visita aqui ao nosso estado. Quero cumprimentar todos os internautas que nos acompanham, muito especialmente aqueles que acompanham o Nocaute e todos os outros sites e blogs que vão fazer circular essa entrevista. Obrigado pela sua introdução, esse contexto muito elucidativo de algumas perspectivas que nós temos sobre a conjuntura brasileira. Em primeiro lugar, é claro que a observação acerca do resultado eleitoral em si mesmo já contém uma premissa. Ou seja, aquela segundo a qual nós reconhecemos que nos anos do lulismo, esses anos desse projeto progressista democrático popular à frente do país foram produtivos para o Nordeste, propiciaram perspectivas políticas que seja no plano do desenvolvimento econômico, seja no que se refere à infraestrutura, por exemplo, na transposição do rio São Francisco e na questão social trouxeram ganhos para a população do Nordeste. Acho que isso em larga medida explica o fato de haver uma votação tão expressiva para o candidato Haddad. Um reconhecimento, portanto, desses resultados. Diferente do que, às vezes, na luta política se coloca de que o povo daqui ou dacolá não sabe votar. Eu diria que no caso do Nordeste a população demonstrou uma imensa sabedoria, porque distinguiu muito claramente onde estava a proposta política que melhor representaria os seus interesses. Infelizmente perdemos e transformamos isso em reflexão permanente e em movimentação, porque a vida segue, a vida continua.
Nós temos estados a administrar. Desafios, portanto, no plano administrativo a enfrentar. E um dos caminhos para que nós possamos dar conta dessa tarefa que a população nos outorgou é exatamente a união. A sabedoria popular diz que a união faz a força. O Consórcio Nordeste nasce dessa visão segundo a qual uma fragmentação ia nos fragilizar em um momento de tanta perplexidade na vida política nacional. Então, a união é propiciada pela afinidade política e ideológica, mas também pela confiança pessoal que há entre os nove governadores do Nordeste levou a essa a essa formatação institucional que juridicamente é possível e vem, inclusive, sendo replicada em outras regiões. Nós tínhamos, antes do Consórcio Nordeste, o consórcio Brasil Central e agora mais recentemente relançamos também o Consórcio Amazônico. Então, é algo que essa cooperação federativa horizontal entre os estados acabou se alastrando, o que acho especialmente positivo.
Tem essa dupla face, como você menciona: é algo jurídico, administrativo de parcerias. Mas ao mesmo tempo é uma ferramenta de ação conjunta pela qual nós desejamos intervir nos temas atinentes ao desenvolvimento regional, mas também ao debate nacional. Propusemos e foi acompanhado por outros colegas governadores de outras regiões essa carta aberta aos poderes da República e à sociedade sobre o decreto que libera armas e munições.
FM: Qual a sua opinião a respeito dessa questão, já que o senhor vem de uma trajetória no mundo jurídico?
FD: Nós consignamos na carta, eu e mais treze colegas governadores, catorze governadores, uma visão acerca do fato das estatísticas e os estudos internacionais mostrarem que quanto mais armas e munições circulando na sociedade é até intuitivo imaginar que isso gera um aumento da violência. Nós consignamos isso na carta e aí sim, com essa experiência jurídica de professor, de juiz, que alertamos também para a incompatibilidade que há entre o decreto e uma lei, todos sabem que há uma hierarquia de normas jurídicas e obviamente a lei tem primazia, tem maior força normativa. E isso também não foi observado nesse caso porque estranhamente o estatuto do desarmamento está sendo descumprido por um ato de hierarquia inferior, no caso um decreto que cria um artifício interpretativo. A lei diz que para qualquer pessoa ter uma arma, ela precisa demonstrar efetiva necessidade. Qual foi o ardil criado? Uma presunção de efetiva necessidade. E essas presunções constantes nesses decretos foram tão largas que, na verdade, se inverteu na prática a presunção, ou seja, aquilo que teria que ser demonstrado efetivamente, que seria a efetiva necessidade, se transformou numa presunção absoluta de efetiva necessidade e quase que passou a ser excepcional a ideia de não ter necessidade. Evidentemente é uma burla à vontade soberana do Congresso Nacional. Desse ponto de vista, a carta, muito corretamente, critica a medida adotada pelo governo.
FM: O senhor, não só nas suas eleições para governador, mas agora também na formação desse consórcio nordestino, revelou uma capacidade de agregar e de unir forças muito grande. A impressão que se tem é que, mais do que nunca, o Brasil está precisando disso: juntar as pessoas em torno de uma ideia central. Que contribuição o senhor acha que pode dar, que o Nordeste, o Maranhão, mas o senhor, particularmente, pode dar para essa divisão que o Brasil está vivendo nesse momento, para tentar reaglutinar os democratas brasileiros?
FD: Eu fui juiz durante doze anos, fui deputado federal. Como você bem sabe, o parlamento é uma escola que ensina que o diálogo, a busca de maiorias é algo a ser exercitado com muita serenidade, prudência e cautela. E é isso o que eu tenho procurado usar no plano político. Como juiz faço o diálogo que você tem que fazer com as partes o tempo todo, com o contraditório, com a defesa, a busca da conciliação. Como deputado aprendi que essa ideia de que você sozinho não consegue nenhum resultado expressivo. Você não aprova uma lei sozinho. Você tem que construir maiorias e, portanto, você tem que transigir, pactuar, conciliar com visões diferentes. Tenho procurado trazer isso para a política. Essa visão segundo a qual ninguém tem o monopólio da verdade ou da virtude e por isso você tem sempre que procurar dialogar com diferentes forças políticas. Acho que isso, de fato, é uma contribuição imprescindível para que o Brasil possa superar essa quadra de trevas.
Por sobre as divergências, os dissensos que compõem a essência de uma sociedade democrática, nós precisamos construir, ainda que temporariamente e de modo utópico, consensos ou maiorias capazes de impulsionar o país para adiante. Capazes de impulsionar políticas públicas e soluções para os problemas nacionais, marcadamente a questão econômica de hoje, da recessão e do desemprego.
De um modo geral, entre os governadores, e aí eu expando para além do Nordeste propriamente, eu acho que na imensa maioria dos governos estaduais há hoje essa predisposição a conversar, dialogar, trocar ideias, trocar opiniões. Nesse momento em que a vida nacional vive tantos conflitos, acho que é uma contribuição importante que os governadores podem dar. E sinto, percebo, tenho procurado ajudar a que esse clima seja cada vez melhor não só a que se refere à pauta federativa, mas progressivamente ir criando alguma convergência em torno de premissas. Por exemplo, hoje nós já conseguimos ter uma compreensão de que a reforma da Previdência não é uma solução única, uma panaceia, uma pedra filosofal, um santo graal que miticamente vai salvar o Brasil. Hoje, a imensa maioria dos governadores já dizem: tudo bem, tem a pauta do Guedes aí, o Congresso está discutindo. E o que mais? O que mais vai acontecer no Brasil para que a economia volte a crescer, volte a gerar empregos, a vencer a recessão econômica, que de modo tão agudo se manifesta nos lares dos brasileiros?
É nesse espaço que eu tenho procurado atuar e graças a Deus eu acho que nós temos um clima bastante positivo, de um modo geral, entre os governadores, para que a gente ajude na emulação de ideias, propostas junto ao Congresso Nacional e à sociedade para rompermos esse período de obscurantismo, de tendências autoritárias e fascistas que marcam abordagens de segmentos da política brasileira, especialmente do governo federal.
FM: Nos últimos cinco meses houve uma transformação profunda na atmosfera que cercava o presidente da República, porque ele veio de uma vitória indiscutível nas urnas, mesmo utilizando o instrumento das fake news. Mas em tão pouco tempo, a impressão que Bolsonaro transmite, primeiro, é que ele está estimulando um desapreço, para falar o mínimo, por instituições que são importantes, como o Supremo Tribunal Federal, como o Congresso Nacional. Isso leva à impressão de estar em curso uma tentativa de autogolpe. O senhor se preocupa com isso?
FD: Realmente nós vivemos em um clima de ausência de normalidade democrática já há algum tempo. Especialmente a partir da absurda abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma.
Espírito de seita no centro do comando do país
Acho que fica evidente que não havia nenhuma base constitucional e jurídica para aquele processo de impeachment. Daí se abriu um ciclo muito negativo na vida política brasileira, uma espécie de vale-tudo, uma polarização sectária cujo apogeu, sem dúvida, foi a vitória de um candidato presidencial que tem essa marca, historicamente, de ser uma liderança de um segmento, de um setor muito pequeno e que levou a essa lógica, o espírito, aí sim, literalmente, sectário, ou seja, o espírito de seita para o centro do comando do país.
Ele governa, aparentemente, de olho apenas nos seus, no núcleo duro das correntes de opinião que levaram à sua vitória. As mensagens que ele emite o tempo todo são, sobretudo, para essas pequenas e combativas seitas que inicialmente o apoiaram e que ele considera, aparentemente, como sendo a sua base predominante.
O grande problema é que ele pode até resistir à acentuada queda de popularidade que vem enfrentando se apoiando nesses pequenos grupos. Porém, não irá governar, porque é uma estratégia paradoxalmente defensiva.
Ele acabou de vencer uma eleição presidencial, não viveu sequer a chamada lua-de-mel, porque isso vem desde janeiro, desde cedo. Nunca antes se viu na história com tanta velocidade alguém optar por uma estratégia tão defensiva estando no comando do país. Ao ponto de se conduzir a esse paradoxo de chamar uma manifestação da sociedade de apoio ao governo por parte dos setores minoritários, porque o campo político que o apoiou é muito mais amplo do que aqueles que estão apoiando essa manifestação a favor não se sabe bem do quê, mas sobretudo dessa visão sectária que ele representa.
Nós temos uma tendência de impasse no país, de ausência de hegemonia, portanto, ausência de condições para que o país evolua. É preciso romper com isso, por vários caminhos. Já aludi ao papel dos governadores e do próprio Congresso Nacional. O Judiciário tem, sem dúvida, um papel importante, as organizações da sociedade, a mobilização do povo, as lutas sociais, as lutas sindicais para rompermos essa tendência paralisante que a entronização de uma política sectária no comando do país conduz. Ou seja, ele não governa, mas não desocupa o governo. É mais ou menos essa conjuntura que nós estamos vivendo nesses cinco meses. Pra onde ele conduzirá isso, aí sim, aí a preocupação. Esses apelos, esses segmentos sectários contra as instituições não são inéditos. Nós conhecemos antecedentes históricos.
FM: Sim, recentes até.
FD: Alguns mais recentes, outros mais remotamente. Eu posso aludir à carta de Jânio Quadros falando das forças ocultas. Poderia aludir ao nazifascismo dos anos 30, que procurava mobilizar esses segmentos contra as instituições e encontrando inimigos como mobilizadores de paixões, não construtivas, mas destrutivas e que por isso, supostamente, iriam redimir a nação. Não é um etos desconhecido. Sem dúvida nenhuma, é um etos perigoso. Porque pode conduzir a esse tipo de extremos e isso nós temos que evitar mediante a formulação de uma política ampla, que não seja a perda da esquerda política e que garanta a continuidade do regime democrático, a proteção da Constituição de 1988, como pacto civilizacional capaz de fazer com que nós tenhamos condições de atravessar essas trevas e chegar a um outro processo eleitoral. E, aí sim, ter a capacidade de vencer as eleições e apresentar um projeto diferente.
O papel das Forças Armadas no governo Bolsonaro
FM: Cada dia parece mais claro para a sociedade, para a opinião pública que ele governa sob (não sei se a palavra é muito forte), tutela militar, tutela do alto comando Exército. É a primeira vez, nem na ditadura militar você teve isso. Por exemplo, o porta-voz é um oficial general. Figueiredo tinha o Alexandre Garcia, que você pode gostar ou não gostar dele, mas era um jornalista profissional. O Costa e Silva tinha o Carlos Chagas, podia gostar ou não, mas era jornalista vindo do Estadão. E ele agora tem um general. Ele, Bolsonaro, transmite a impressão de que essa tutela o tem impedido de cometer alguns desacertos. A gente pode pegar o caso da Venezuela, quando ele praticamente deixou aberto para o presidente Trump a possibilidade para que o território brasileiro fosse utilizado e o vice-presidente da República disse não. E dias depois ele começa a dizer que Maduro já não era mais o problema, que o problema era a Kirchner na Argentina. O senhor tem informações sobre como as Forças Armadas, sobre como o alto comando do Exército vê essa situação?
FD: As Forças Armadas, pelos seus comandos, infelizmente, acabaram entrando nesse consórcio, nesse condomínio do poder de modo muito decidido. O que traz alguns bônus, não há dúvida, mas muitos ônus, muitos perigos, muitos riscos. Porque não há dúvida que há uma imbricação, um laço aos olhos da sociedade, indissociável entre a figura do Bolsonaro e exatamente a atuação de segmentos importantes das Forças Armadas. Imagino, portanto, que em razão desse laço indissociável estejam ocorrendo manifestações de bom senso por parte de oficiais generais que enxergam os perigos que a própria instituição está correndo. Na medida que, eventualmente, pode ser convocada a aventuras insustentáveis. Por exemplo, envolver a pátria brasileira em uma guerra externa sem nenhum sentido. Então, nesse conjunto de observações, me parece que o papel das Forças Armadas acaba sendo útil. Pouco importa se por convicção ou se por conveniência, mas tem sido útil como uma manutenção de outros setores que, aí sim, têm uma visão objetivamente mais perniciosa. Me refiro especialmente àqueles setores tão abertamente entreguistas, liderados pelo Steve Bannon, pelo Olavo de Carvalho. Aqueles que colocam objetivamente e concretamente os Estados Unidos acima do Brasil e que batem continência à bandeira dos Estados Unidos e acreditam que de fato o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.
Nós temos essas duas forças hoje em disputa no interior do governo e concretamente as Forças Armadas têm funcionado como uma voz de ponderação para evitar males maiores. Repito: pouco importa uma análise se por convicção patriótica nacional ou por conveniência de sobrevivência, na medida em produziam esse condomínio. O fato é: objetivamente, os oficiais generais que integram o governo têm tido um papel positivo, no sentido de evitar um mal maior. Me parece, contudo, Fernando, que isso é insuficiente. É uma política de redução de danos.
Não por acaso o vice-presidente da República nesse momento visita a China, exatamente tentando atenuar o impacto de uma política no auge de uma guerra comercial e tecnológica acirrada entre os Estados Unidos e a China.
O Brasil está em contradição com seu principal parceiro comercial e que tem maior dinamismo na economia global, que é a China e, portanto, no alinhamento automático com os Estados Unidos. O vice-presidente Mourão e aqueles que o cercam enxergaram essa contradição e os perigos que isso implica para o empresariado brasileiro, para exportações e buscam um caminho de diálogo. Concretamente tem tido um papel positivo. Mas insuficiente, porque afinal o presidente da República é ele.
Concretamente nas decisões principais, no presidencialismo, não é a voz dele que prevalece. O que nós temos visto é que, infelizmente, apesar desse esforço, por exemplo de alguns militares, mesmo de quadros do governo, alguns ministros que têm procurado um papel positivo de diálogo, de entendimento, isso acaba sendo soterrado por uma série de outros sinais emitidos desse bolsonarismo “hard”, raiz, vinculado a essa visão sectária de matriz internacional liderada por esses gurus a que fiz alusão.
Esse debate das armas é a prova cabal disso. Você põe em risco as famílias brasileiras, põe em risco a segurança pública para atender a indústria armamentista e se filiar à visão norte-americana de comprar armas em supermercado. É exatamente um sinal que mostra que a primazia, infelizmente, não é desses setores mais ponderados, de bom senso, representada por alguns militares, como vimos, mas sobretudo dessa lógica sectária que tem conduzido a sucessivos desastres, como temos assistido. E esse das armas é apenas mais um caso nessa sequência de sinais, por exemplo, contra a cultura, o desmonte de instituições nacionais, da própria noção de sistema nacional de ciência e tecnologia, da ciência brasileira, da universidade brasileira. Então, são danos imensos.
FM: A FINEP está correndo risco de evaporar.
FD: E mesmo que não seja extinta são órgãos que estão fenecendo, que estão sendo fragilizados, que estão perdendo dinamismo, ânimo. A Educação de um modo geral, a Ciência, Tecnologia, Cultura Brasileira, são danos geracionais, eu diria. É aí que eu digo que o papel de um ou outro oficial general é insuficiente porque esses prejuízos imensuráveis, gigantescos, estão, infelizmente, acontecendo.
FM: Agora, a nossa geração, ou mais a minha do que a do senhor, quando o senhor nasceu eu já trabalhava com um censor do meu lado na redação.
FD: Eu imagino que sim, eu nasci em 1968.
Os militares e a soberania nacional
FM: Portanto no ano do Ato 5. Mas ainda sim, por maior que fosse a aversão que tivéssemos às lideranças da ditadura militar a gente reconhecia, a esquerda brasileira, reconhecia nos militares, aqui no Brasil, um traço positivo que era a questão do nacionalismo, do respeito à soberania nacional. Será que isso era uma fantasia que a gente criou na nossa cabeça a respeito do Exército, das Forças Armadas? Porque estamos vendo o pré-sal, a Embraer e tantas outras, para falar apenas de dois casos, sem absolutamente nenhuma reação dos militares. Como é que o senhor entende isso?
FD: Acho que essa formação mais nacionalista, nacional-desenvolvimentista, ainda que à direita, de uma parte do pensamento militar brasileiro, infelizmente, ficou para trás. Acho que realmente é algo datado.
Havia alguma razão de ser, por exemplo, pela grande hegemonia que o trabalhismo e o próprio conceito de nacional desenvolvimentismo teve a partir de Getúlio Vargas, passando por Juscelino Kubitschek chegando até João Goulart. Isso era tão poderoso – na minha avaliação histórica, retrospectiva – que acabava influenciando todas as instituições, aí inclusas as Forças Armadas. Bom, de algum modo isso passou, foi superado, não vejo essa perspectiva autenticamente nacional sendo dominante nas instituições militares hoje. Há de fato, historicamente, um apelo a pátria mas o meu patriotismo, por exemplo, é indissociável da temática popular. O verdadeiro patriotismo, ou o verdadeiro nacionalismo é indissociavelmente comprometido com o desenvolvimento do país. Desenvolvimento para todos, inclusivo, políticas sociais, essa é a única forma de ser patriota, não basta chorar vendo a bandeira e ouvindo o hino, é preciso amar autenticamente o povo brasileiro e querer o bem do povo brasileiro. Isso, infelizmente, nós não estamos enxergando nesse momento, exatamente a partir desses sinais que você registra.
Essa situação da soberania energética brasileira é especialmente elucidativa nesse aspecto. Eu não consigo imaginar que os militares nos anos 60 e 70, que foram os guardiões da Petrobras tão fortemente, o Geisel teve um papel muito forte nisso, pudessem concordar com termos uma política de destruição desse principal vetor do desenvolvimento brasileiro nas últimas décadas, que é o complexo energético, indo do poço do petróleo até a indústria automobilística, é uma cadeia produtiva que foi, bem ou mal, estruturada a duras penas desde a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, ainda por Getúlio Vargas, passando pela indústria automobilística com a marca do Juscelino e depois, posteriormente, a soberania do país. A capacidade de refino do Brasil, refino de petróleo, que tem sido destruída, é uma conquista que passou pela esquerda, pela direita, dos anos 40 até, praticamente, os anos Lula e os militares sempre colaborando nessa construção. Então, Fernando, eu assisto com idêntica perplexidade de que não haja uma insurgência de vozes, de lideranças, com a destruição da soberania energética do Brasil representada por essa visão selvagemente privatista, de dissolução da Petrobras, de canibalização da Petrobras, de fragmentação de seus negócios, de venda parcial ou total, de alienação dos campos de petróleo e dessa perda da capacidade de refino que conduz ao um desastre. Nós temos o crescimento da exportação de petróleo bruto e a ampliação da importação de refino, de produtos refinados. Ou seja, nós involuímos, nós andamos para trás em relação a conquistas que haviam sido, inclusive, fruto do trabalho das Forças Armadas, dos militares, quando dirigiram o país no regime militar.
É positivo que haja uma certa reserva de bom senso, forças de contenção no interior do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, em relação ao arroubos mais insensatos do bolsonarismo.
Mas é insuficiente quando nós olhamos concretamente as questões nacionais: não há uma reversão desses prejuízos mais profundos que o Brasil está vivendo. Essa questão da energia, por exemplo, é bem emblemática.
A Base de Alcântara
FM: Feliz ou infelizmente quis o destino que uma pedra viesse parar no seu sapato, que é a questão da Base de Alcântara. Como é que o senhor que é governador do Maranhão reage a esse processo de cessão para os Estados Unidos da utilização de Alcântara?
FD: Eu tenho feito uma ponderação, como sempre, em torno da Base a partir de duas premissas. A primeira é que a Base existe, portanto, ao constatarmos que ela existe há quatro décadas, temos que dar a ela um destino. Tentamos, ao longo desse período, a utilização comercial da Base por várias veredas. Desde o desenvolvimento de artefatos próprios, que infelizmente foi objetivamente interrompido quando houve aquela tragédia de 2003, a explosão do VLS brasileiro. Houve outros acordos com outros países, a exemplo da Ucrânia, e todas essas tentativas se frustraram.
Então nós temos uma situação concreta: a Base existe mas não tem proveito para o Brasil, nem para o Maranhão e muito menos para a cidade de Alcântara. E 80% da tecnologia embarcada por artefatos aeroespaciais é de origem norte-americana, até o presente momento. Foi feito um acordo de salvaguardas tecnológicas que permite a proteção da propriedade intelectual embarcada em foguetes e satélites de vários países, não só dos Estados Unidos. Recebi, por exemplo, o embaixador do Canadá e algumas empresas canadenses que exploram esse mercado aeroespacial utiliza, total ou parcialmente, tecnologia norte-americana. Então eles, por exemplo, só poderão, em algum momento, utilizar a base de Alcântara, as empresas canadenses – por usarem tecnologia americana – se houver a assinatura e a homologação, a confirmação, desse acordo de salvaguarda no Congresso Nacional.
O acordo em si, ou seja, o conceito de salvaguardas tecnológicas nesse sentido, nesse contexto, é um passo adiante porque viabiliza a exploração comercial da Base. A outra ponderação, como eu disse são duas vertentes….
FM: A questão da soberania.
FD: A outra ponderação que eu faço é atinente às questões concretas concernentes à soberania nacional. Ou seja, a base não pode ser alienada, não pode ser cedida, não pode virar um enclave de nenhum outro país do mundo. Ela pode ser, no máximo, “emprestada” para lançamentos tópicos como se fosse uma corrida de Fórmula 1 no autódromo de Interlagos. A Ferrari vai lá com seu automóvel, com seu veículo, disputa a corrida e depois fecha o seu container e vai embora. A Ferrari não fica administrando o autódromo de Interlagos.
Mal comparando, é isso que eu considero que deve ser feito. O acordo pode ser homologado. Porém isso não deve significar nenhum tipo de transferência de administração, de gestão, nem da base nem do programa aeroespacial brasileiro para outro país, qualquer que seja ele. Nesse sentido é claro que inclusive as receitas derivadas da eventual exploração comercial de Alcântara podem e devem ser aplicadas em favor do desenvolvimento da nossa própria tecnologia, acho que é esse o objetivo que nós sempre devemos almejar.
E, finalmente, eu tenho sublinhado as salvaguardas sociais. Nós temos um passivo social, o governo brasileiro, desde o regime militar, mas passando por todos os governos que se sucederam à implantação da Base, no início dos anos 80, com as populações tradicionais, quilombolas, famílias que foram removidas dos territórios hoje ocupados pela Base e que não foram sequer indenizados. São processos que até hoje se arrastam na Justiça, além da falta de benefícios sociais para as comunidades e especialmente para o município de Alcântara. Então é outra ponderação que eu tenho feito.
Muito bem, vamos tratar da exploração comercial sem perda de soberania mas, ao mesmo tempo, temos que enfrentar a questão social concomitantemente para que as populações não fiquem vendo apenas a fumaça do foguete. É preciso que haja a participação das comunidades no proveito dessa eventual exploração comercial. Temos adotado políticas concretas para isso. Por exemplo, já há dois anos implantamos um mestrado em Engenharia Aeroespacial em parceria das nossas duas universidades, a federal e estadual do Maranhão, com a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para desenvolvimento de recursos humanos, cientistas, técnicos aptos a contribuírem com o programa aeroespacial brasileiro.
Então é um tema realmente complexo, exatamente em razão desse contexto, mas que permite múltiplas abordagens e mediações. Mediações que permitam que a Base possa ter algum resultado, na medida que ela existe e não é usada, mas ao mesmo tempo preservando os interesses nacionais e também das comunidades, sobretudo da cidade de Alcântara e do povo do Maranhão, claro.
FM: No limite, o senhor não teme que numa situação conflitiva ela possa ser usada militarmente? Porque teoricamente é uma base para o lançamento de foguetes com satélites. Mas um foguete que leva um satélite pode também levar uma ogiva nuclear.
FD: Claro, o artefato é o mesmo. No limite é claro que poderia acontecer. Não me parece algo provável até porque hoje a tecnologia militar mudou muito. Hoje as guerras à distância, na verdade os conceitos militares tradicionais até perderam validade. Eu diria até que o próprio conceito de guerra de ocupação perdeu grande parte da sua utilidade. Veja que marcadamente, no caso latino-americano, houve o desmonte de vários projetos nacionais de desenvolvimento por utilização de outras estratégias. Por exemplo a estratégia judicial, a estratégia da guerra cultural – a tal da guerra híbrida – que acabou resultando desde a cassação de Fernando Lugo no Paraguai à perseguição a Cristina Kirchner na Argentina.
FM: E Honduras…
FD: As próprias dificuldades impostas a vários países e no caso brasileiro também, não há nenhuma dúvida que o Departamento de Estado e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos operaram e operam muito fortemente na influência a instituições situadas no Brasil. Especialmente no sistema de Justiça, que acabaram conduzindo a determinadas decisões que foram politicamente influenciadas ou manipuladas para o alcance desse objetivo, dessa estratégia de guerra híbrida de desmonte de uma perspectiva nacional desenvolvimentista e popular que hegemonizaram, em um certo momento, a cena política na América Latina.
Eu particularmente não acredito que haveria uma guerra de ocupação em uma conjuntura próxima, visível, de modo que nesse aspecto não imagino que a base de Alcântara possa ter essa utilização.
FM: Militar…
FD: Se houvesse, nós não estaríamos aqui na estratégia de resistência muito fortemente, nós estaríamos a poucos quilômetros da base de Alcântara. Realmente eu não acredito nesse risco nas próximas décadas até por ser inútil, porque o imperialismo norte americano tem obtido êxitos sem precisar recorrer à força dos tanques ou à sua força naval, por exemplo.
Bolsonaro e os estados do Nordeste
FM: A vitória do Fernando Haddad aqui no Maranhão e nos demais estados do Nordeste, se foi inicialmente celebrada por todos os democratas brasileiros, logo depois passou a ser um susto. Porque uma das primeiras declarações do Bolsonaro foi: “Os governadores do Nordeste não precisam vir falar comigo, eles têm que ir a Curitiba falar com o chefe deles”. Para um estado como o Maranhão, particularmente, que é um estado que depois de um mandarinato de meio século, quebrado por um hiato do Jackson Lago, que o senhor conseguiu cortar pela raiz, isso não pode agravar, não pode dificultar ainda mais a sua capacidade de administração?
FD: Nós temos tido muitos problemas desde que eu assumi o governo em razão da brutal recessão nacional, perda de Produto Interno Bruto no país. E claro que no Maranhão também, aniquilamento de políticas fundamentais para a geração de emprego, a exemplo do Minha Casa Minha Vida do PAA, (Programa de Aquisição de Alimentos). Então, de fato a questão nacional inside muito fortemente sobre qualquer perspectiva de retomada do desenvolvimento do Maranhão. Portanto, nesse aspecto eu tenho tido um ambiente crescentemente hostil porque eu vivi o período da presidenta Dilma muito questionado porque quando eu assumi em 2015 – no segundo mandato dela e o primeiro nosso – e ela praticamente não conseguiu governar já num ambiente de aguda recessão económica, de crise política, depois veio o Temer e agora o Bolsonaro.
FM: O senhor já está com a casca grossa?
FD: Eu sou católico apostólico romano, eu tenho muita fé em Deus e quem tem fé – disse o Papa Francisco – nunca se entristece. Inclusive ele tem uma carta pastoral que ele se refere a isso: o cristão tem que ser alegre, obrigatoriamente. Então eu tenho enfrentado essas intempéries com um sorriso nos lábios, dentro do que é possível, porém, reconhecendo que elas existem. Nesse caso é evidente que estar em dissonância com o poder central causa dificuldades. Eu não posso nessas alturas, nesses cinco meses, dizer que o Maranhão tem sido perseguido. Não posso dizer isso porque, de um modo geral, nada aconteceu de bom em canto nenhum. Não posso dizer que o estado A ou B recebeu algum …
FM: Algo que não tenha sido…
FD: Algo que não tenha sido geral. Quer dizer, eu não posso afirmar isso, seria irresponsável da minha parte se eu o fizesse e eu não faço. Até o momento, se alguém me perguntar: “o Maranhão está sendo perseguido pelo governo Bolsonaro?”, eu diria não. Porque nenhum outro estado obteve qualquer tipo de benefício ou investimento, dada essa paralisação nacional…
FM: Nem obteve nem deixou de obter, não houve.
FD: Exatamente, não houve nenhuma evolução na chamada política federativa. Houve recentemente, nos últimos dias, uma novidade que foi por iniciativa do general Santos Cruz – aí novamente aquele papel de bom senso de alguns oficiais generais. Houve uma reunião dos nove governadores do Nordeste com o presidente bolsonaro. O general Santos Cruz me ligou, ligou aos demais governadores e eu disse: “Olha nós queremos. O presidente e a equipe querem ouvir os nove governadores do Nordeste?”. Vamos lá, fomos os nove, nos sentamos primeiro com o general Santos Cruz, depois com o próprio presidente Bolsonaro.
FM: E como foi esse encontro?
FD: Os EUA não teriam enfrentado a crise de 2008 se não fosse a decisão do Obama de colocar o estado nacional a serviço da salvação da economia norte-americana. Às vezes ficam com essa visão, não estatizante, não é isso, é a leitura econômica do que acontece no mundo. Basta olharmos a experiência dos países da OCDE em que todos têm um nível mais alto, mais baixo de presença do estado mas ninguém abre mão da presença do estado ou dos aparelhos estatais para a ativação da economia.
Então a nossa agenda não é do toma lá dá cá, nem do pires na mão, nem do me dá um dinheiro aí. É a agenda do desenvolvimento. O que que nós temos de dívidas a receber no caso, por exemplo, do Maranhão. O governo federal nos deve 15 bilhões de reais. Quinze bilhões, para o Maranhão. Derivado do que? Derivado da lei Kandir que foi votada algumas décadas atrás, desonerando a exportação dos estados, e em troca disso, diz a lei, haveria uma compensação financeira. Não houve. Nesses anos todos.
Só da lei Kandir são onze bilhões. Nós temos uma ação judicial já transitada em julgado com o STF relativa à diferença do FUNDEF. Ainda, portanto, antes do FUNDEB, ação judicial que resultaria para o Maranhão algo em torno de 2 bilhões de reais. Então nós estamos falando de questões concretas e estamos dizendo, tudo bem, os estados têm os seus problemas? Claro que têm, mas a solução não depende apenas dos estados. Porque fica esse discurso fácil, dizer “aumentou a despesa dos estados”. No caso do Maranhão aumentou porque tinha que aumentar. Nós contratamos policiais, nós fizemos mais escolas, escolas de tempo integral, e abrimos hospitais. Quem é que discorda disso? Claro que nós ampliamos despesas. Agora, nós queremos as condições de sustentação disso e a continuidade desse ciclo de investimentos públicos com base naquilo que nos devem.
Essa é a agenda que nós estamos apresentando, especialmente no caso do Nordeste. E eu nem tenho a pretensão de receber essa dívida toda. Se eles começassem a pagar essa dívida, é o que nós temos dito, por vários caminhos, já seria útil para o Maranhão e seria útil para o Brasil. Útil pro Nordeste e útil pro Brasil.
O que estão pensando as pessoas que estão nos assistindo agora? É no filho desempregado, é na perda do plano de saúde, é no menino e na menina que deixou de ter o Prouni, deixou de ter o Fies. Que é isso que as pessoas estão vivendo nos lares brasileiros, e essa é a agenda que os governadores do Nordeste e todos, eu diria, na sua imensa maioria, quase todos, têm levado ao presidente da República. Portanto não é um favor dialogar conosco, é uma obrigação. Dialogar conosco porque nós estamos apresentando uma agenda boa. Por isso que eu espero que além da gentileza de nos receber haja de fato gestos concretos para implementar uma agenda boa para o país.
Avaliação do governo Bolsonaro
FM: Eu queria que o sr. fizesse uma avaliação pontual de algumas questões do governo Bolsonaro até agora. Eu começaria com uma questão que diz respeito muito especificamente ao Maranhão, que é a questão do meio ambiente, já que vocês têm o privilégio de ter a maior diversidade de ecossistemas do país. E o ministro de Meio Ambiente é conhecido como inimigo da natureza, da proteção da natureza. O senhor tem preocupação com relação a isso?
FD: Nós temos uma agenda, inclusive, de compromissos internacionais que tem sido lamentavelmente abandonada. Essa temática de mudanças climáticas não é uma temática de esquerda, não é uma temática socialista. Até porque países socialistas, a exemplo da China, vivem com seus próprios problemas ambientais. É uma temática de sobrevivência do planeta. Então, quando nós olhamos essa agenda internacional, quando nós olhamos o desmonte desses órgãos, de entidades públicas, o desmonte do próprio pensamento acadêmico das universidades, o resultante disso não é bom. O resultante disso é que nós podemos, no caso brasileiro, ter retrocessos, inclusive em relação a governos que não eram sequer da esquerda. Recentemente houve uma reunião de ex-ministros de Meio Ambiente de vários governos, eu tenho impressão que inclusive de governos militares, do Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, do Lula, da Dilma. Todos manifestando que há um retrocesso numa agenda que foi construída, veja você, desde a lei 6938 que é de 1981 – portanto ainda nos estertores do regime militar – que é a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente.
Então, nós temos marcos legais e compromissos internacionais que devem ser cumpridos, e lamento que em razão de pressões de um ou outro segmento social nós estejamos objetivamente andando para trás na temática ambiental.
FM: Educação.
FD: É sem dúvida o território em que o governo vai pior. Porque não conseguiu sequer estabilizar uma equipe. Órgãos importantes como o Inep já vão lá pro seu sexto ou sétimo presidente, não há uma política educacional no país, de nenhum tipo a não ser de destruição.
Então, realmente se fosse possível avaliar o que já é ruim, que é o conjunto da obra, sem dúvida em relação à educação é o ponto pior dessa obra que já é ruim.
A reforma da Previdência
FM: Economia.
FD: É um samba de uma nota só, em torno de uma idéia falsa de que a reforma da Previdência sozinha vai salvar o país. Pode salvar bancos, pode salvar o capital financeiro e levar dinheiro para lá.
Se, por exemplo, a tal da capitalização fosse aprovada, que eu espero que não seja. Mas obviamente não tem essa aptidão sequer de criar a chamada confiança. A confiança dos tais mercados se assenta em vários componentes, não só nessa suposta equação fiscal, suposto equilíbrio que a reforma da Previdência supostamente traria. Então eu diria que é uma gestão econômica insuficiente e portanto equivocada. Porque não têm sido enfrentados outros pontos que são determinantes para o desenvolvimento brasileiro no destravamento da economia. Por exemplo a própria reforma tributária. Temos um sistema tributário que cobra mal os impostos e tem atipicidades a exemplo da isenção de impostos sobre lucros e dividendos. Renda de capital. Se houvesse a volta da legislação vigente antes de 1995, nós teríamos – veja, não é aumentar imposto, é só voltar à lei que vigorava até 1994 – nós teríamos uma arrecadação sobre renda do capital da ordem de 50 bilhões por ano. Em dez anos 500 bilhões de reais. F
ala-se na reforma da Previdência que supostamente traria um trilhão, então só com tributação de lucros e dividendos você teria metade da reforma da Previdência. Além de outras questões tributárias, como imposto sobre heranças, que no Brasil está muito abaixo da média internacional. Imposto sobre grandes heranças: não há nenhum país da OCDE, países de capitalismo avançado, que cobre 4% ou 5% de imposto sobre heranças. Falo de grandes heranças. Nós precisamos dimensionar isso, porque às vezes a classe média ouvindo acha que [será taxada], mas nós estamos falando de ricos de verdade. E milionários. Pessoas que têm patrimônio acima de 5, 8, 10 milhões de reais, portanto que deixam grandes heranças. E que nos Estados Unidos, na Inglaterra, nos países europeus de um modo geral teriam uma tributação mais equânime do ponto de vista inter-geracional.
Há questões para o desenvolvimento brasileiro, mesmo no plano das chamadas reformas, que mereceriam uma atenção da equipe econômica e que até agora não têm tido, então, é uma gestão insuficiente nesse sentido. Basta ver os indicadores. Desemprego: nós estamos chegando em São Paulo a 17% de desemprego formal, mais a informalidade, veja que é uma gestão econômica que não trata disso. Eu nunca ouvi a palavra emprego ser pronunciada nesses cinco meses de governo.
FM: Relações Exteriores.
FD: Outro ponto também realmente muito crítico, eu diria até inusitado, porque nós temos manifestações incompatíveis com a longa tradição da Casa de Rio Branco. Uma das principais instituições do país tem sido deslustrada por essas visões simplórias, toscas acerca do papel do Brasil no mundo. Então transformar o Brasil num apêndice do ‘trumpismo’ e de Steve Bannon é realmente algo que o Barão do Rio Branco seguramente não aprovaria e que a imensa maioria dos excelentes quadros do Itamaraty certamente estão constrangidos a essa altura com esse retrocesso que não se via nem nos governos militares. Ao contrário, podemos falar de Ítalo Zappa, Saraiva Guerreiro, Azeredo da Silveira e do próprio Celso Amorim.
FM: O Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo revolucionário de Angola. Antes mesmo da União Soviética e de Cuba. E era governo Geisel.
FD: Porque havia uma política multilateralista, que Azeredo da Silveira, Saraiva Guerreiro, Ítalo Zappa e outros tantos conceberam assentados em uma tradição secular. E tudo isso está se perdendo, o Brasil perdendo credibilidade e perdendo até respeitabilidade. O constrangimento diplomático que o presidente da República sofreu recentemente em Nova York não é pequeno. O único da história brasileira. O que revela deficiências inclusive da política externa. Porque permitir que o presidente da República, que é o símbolo nacional, seja de tal modo desprezado, é demonstração também de deficiência da chancelaria. Então, realmente é um ponto que fica ali junto com o Ministério da Educação.
FM: Finalmente, Saúde. E aí eu queria ouvir a opinião do senhor sobre o fim do Mais Médicos, particularmente no Maranhão. O prejuízo que pode estar tendo o fim do programa Mais Médicos.
FD: É um assunto, Fernando, que até me comove. Porque eu conheço a realidade deste país, a realidade do povo pobre do país. O imenso sacrifício que nós fazemos hoje pra tentar manter portas abertas para atender esse povão que precisa. Em momentos dramáticos de sua existência, de doenças, a mulher que precisa ter seu menino, o idoso. E eu tenho feito um esforço gigantesco, eu abri aqui oito grandes hospitais, estruturei a Força Estadual de Saúde com profissionais que procuram fazer atendimento domiciliar para esse segmento de excluídos. Já fizemos mais de 800 mil atendimentos domiciliares com esses profissionais. E sabemos que infelizmente estamos quase que sozinhos nisso, porque os municípios, não por má vontade mas por destruição de suas finanças cada vez mais sendo comprimidos nos seus serviços públicos.
O governo federal por sua vez também com suas insuficiências, o sub-financiamento estrutural do SUS, a retração dos hospitais universitários, as dificuldades na aquisição de medicamentos de alto custo. Estamos vendo isso, o desabastecimento para pessoas que têm doenças crônicas e precisam de medicamentos que são fornecidos pelo Ministério da Saúde. E eu me sinto às vezes muito sozinho nisso, porque você olha para um lado e olha para o outro, uma sociedade perdendo planos de saúde, e objetivamente o governo do Estado lutando dramaticamente para tentar manter as portas abertas de nossas unidades de saúde, dos hospitais, manter cirurgias, e eu sei o quanto isso é doloroso para a população.
O programa Mais Médicos
Uma coisa que me comove muito é imaginar que nós chegamos a dar um pequeno passo com o programa Mais Médicos. Conseguimos que pessoas que nunca tinham visto um médico na vida pudessem ter acesso a um serviço de saúde e ver isso em poucos meses ser desmontado. Então é algo que realmente deve doer na alma de todos os brasileiros. É um dos pontos assim que mais me motivam, de um lado, mas por outro lado me desafiam porque com os custos gigantescos da política pública de saúde, eu durmo e acordo e o preço se altera. Então cada vez nós gastamos mais dinheiro na saúde, eu invisto aqui por mês algo em torno de 130 milhões de reais e recebo do SUS 25 milhões. Então, todo mês eu tenho que me virar para conseguir 105, 110 milhões de reais para manter uma rede de saúde estadual que consiga dar conta dos vazios assistenciais derivados desses problemas todos que nós falamos.
Por tudo isso, certamente, a última coisa que eu faria seria permitir a desativação do programa Mais Médicos, que eu acho que do ponto de vista assim do povão, do povo mais simples, humilde, sofrido, foi o maior retrocesso que vivemos nesses cinco meses. Ele de fato tem feito muita falta. Porque ainda que haja o suprimento parcial dessas vagas com médicos brasileiros, isso não chega nem perto daquilo que efetivamente era feito por intermédio do programa Mais Médicos.
Nós chegamos a colocar isso, os governadores do Nordeste, chegamos a colocar isso em várias cartas, vários documentos, sobre a retomada do Mais Médicos, e infelizmente, por puro preconceito ideológico com os médicos cubanos, se sacrificou os interesses do povo.
E o povo, a população, sequer sabe se o médico é cubano, norueguês, ou de tal nacionalidade, e essa não é uma questão que a população coloque como relevante.
E qualquer pessoa de bom senso sabe que o paciente não vai ficar conversando com o médico, ou o médico com o paciente sobre Fidel Castro ou Che Guevara ou Camilo Cienfuegos. É algo muito tosco e irresponsável essa ideologização que foi feita num programa tão bom como o programa Mais Médicos.
Candidatura à Presidência
FM: Governador, para encerrar, o senhor é o primeiro governador comunista da história do Brasil. O senhor tem planos de ser o primeiro presidente comunista?
FD: Eu acho, Fernando, que hoje no Brasil é preciso ter muita serenidade, muita calma. Porque as coisas são muito instáveis, muito provisórias e muito indefinidas. O que eu tenho procurado fazer, muito concretamente, é ajudar o meu campo político, o nosso campo político. Se fosse possível falar em termos de sonho, sonho de juventude, estar hoje governando o Maranhão já preenche a minha cota de sonhos. Conseguimos vencer as eleições duas vezes.
FM: Quebrando um mandarinato de meio século.
FD: Vencendo o político mais exitoso, no sentido profissional da palavra, da vida brasileira. Foi quem mais acumulou mais mandatos, em todos os planos. Nós estamos em 2019, pela primeira vez desde 1955 sem o sobrenome Sarney no Congresso Nacional. Desde o momento que ele próprio foi deputado e depois senador e depois os filhos, ambos os filhos, primeira vez desde 1955, desde o governo de Juscelino Kubitschek. Claro que eu tenho gratidão ao povo, gratidão a Deus e a todas as pessoas que me ajudaram a cumprir isso. Nesse sentido me dou por satisfeito. Daqui pra frente é procurar ajudar, conversar, ter amplitude, serenidade e ver mais na frente. Eu acho que tem tanta gente boa… Eu tenho orgulho de dizer isso. É muito ruim você achar que pode ser um bom jogador em um time que não joga bem. Você só é um bom jogador se o time joga bem. Acho que a política, usando as metáforas futebolísticas que o nosso querido presidente Lula tanto gosta, é como um time de futebol. O cara pode ser o maior camisa 10, mas se tiver com um time muito ruim ele não vai conseguir fazer grandes coisas.
Tenho muito orgulho do time que eu integro. É o time do Brasil, o time das pessoas que lutam por justiça social, o time das pessoas que têm o pé no chão bem fincado, mas ao mesmo tempo tem a cabeça no sonho, na utopia, na esperança. Então, é esse time que eu integro. Estou muito feliz de jogar nele, de ajudar, poder fazer carta, manifesto, dar essa entrevista para ti, de poder conversar com as pessoas e poder falar um pouco sobre Brasil. Isso já me atende. Eu não tenho essa obstinação de ser candidato a presidente da República. Posso ser, posso não ser. E vou ser feliz do mesmo jeito.
Se você olhar a vida brasileira nos últimos anos, se você pensar: bom, os grandes políticos do país nos últimos anos Lula, Fernando Henrique foram presidentes, Mário Covas não foi, mas é um grande político brasileiro. Alguém tem alguma dúvida de que era um bom político? Ulisses Guimarães também não foi. Leonel Brizola, um monumento da vida política brasileira, em todos os sentidos, um grande orador de massas, administrador bem-sucedido e não foi presidente da República. Então, os ícones da minha juventude não foram presidentes da República. Se eles que foram muito maiores do que eu, não foram, eu também posso não ser. Realmente, eu não tenho nenhum tipo de devaneio em relação a isso.
Nesse sentido, apesar de ser também cristão, eu sou muito fincado naquilo que Lênin chamava de análise concreta da situação concreta. Qualquer projeto desse tipo depende de uma análise concreta de uma situação concreta, não é a situação de hoje e sim a situação de amanhã.
Precisamos tocar a vida e governar o Maranhão. Realmente, aí sim, é o desafio que está impregnado no meu cotidiano, cuidar da situação fiscal, das políticas sociais, proteger os interesses dos mais pobres. Se você não tiver muita determinação quando você olhar, escapa, porque entram outros interesses, então você tem que ficar muito firme. Hoje, por exemplo, neste dia em que estamos fazendo esta entrevista, inauguramos duas escolas. Ter visto meninos e meninas que nunca tinham visto uma escola de alvenaria na vida, porque estudavam com barro, com palha, no interior do Maranhão e ouvir um depoimento de uma mãe feliz, porque finalmente os filhos tinham tido sua cidadania reconhecida e ela própria tem tido a cidadania reconhecida e se emocionar com isso. Realmente valorizar isso como uma grande conquista. Hoje eu durmo feliz: inauguramos duas escolas. Isso é o mais importante. Eleição que vem pela frente é consequência daquilo que é o mais importante que é mudar a vida das pessoas.
Para de falar mal do presidente! E procura fechar uma aliança com governo federal. Para trazer recursos ao nosso estado. Aceita! que dói menos!