Uma chacina provocada por traficantes vitimou quatro motoristas de aplicativo na última quinta-feira (12), no bairro da Mata Escura, em Salvador.
Os assassinos montaram uma emboscada e chamaram cinco condutores, que foram mantidos em cárcere privado em um barraco, onde foram torturados e depois executados. Um deles conseguiu fugir, após outro reagir e entrar em luta corporal com os suspeitos. Os corpos foram encontrados na sexta-feira (13) enrolados em sacos plásticos.
Como motorista sobreviveu?
O sobrevivente, que não teve nome revelado, contou em entrevista à TV Bahia que atendeu ao chamado de duas travestis e que escapou após o motorista Genivaldo da Silva Félix, de 48 anos, tentar reagir. Genivaldo morreu. Os outros homens assassinados foram identificados como Alisson Silva Damasceno dos Santos (27), Daniel Santos da Silva (30), e Sávio da Silva Dias (23). Segundo a polícia, eles são motoristas dos aplicativos Uber e 99.
“Se ele não lutasse para o outro fugir, ia ser mais gente morta. Meu marido foi um herói. Ele sabia que ia morrer e entrou em luta corporal mandando o outro correr. Então o rapaz pulou o barraco e sobreviveu para contar tudo isso à polícia. Ele disse: ‘O coroa me salvou’. Meu marido era o mais velho entre os mortos”, declarou a enfermeira Paula Bispo da Conceição, esposa de Genivaldo.
Os traficantes disseram a ele que estariam cumprindo ordens do chefe do tráfico. “Eu falei ‘irmão, pelo amor de Deus, sou pai de família, vocês não têm necessidade de matar [as vítimas]’. Aí, ele falou: ‘Se dependesse de mim, não morria ninguém, mas quem manda é o coroa’. Ele disse que era para matar todo mundo'”, disse o motorista à TV Bahia.
O motorista que sobreviveu à chacina também gravou áudios para relatar aos colegas de profissão os momentos de desespero. Ele foi amordaçado com fio de internet, teve os pés e mãos amarrados. “Ele falou para mim: ‘Você não vai morrer não. Agora quando eu falar já, é já. Se vire’”, relatou.
O sobrevivente continua falando ainda sobre as circunstâncias em que os outros quatro motoristas foram assassinados. “Os caras [criminosos] falaram que era sexta-feira 13 e que tinham que matar com requinte de crueldade, que tinham que derramar sangue. Cortaram os caras todo de facão e depois deram tiro. Feio, muito feio”, detalha.
Num segundo áudio, chorando, a vítima lamenta a perda dos colegas. “Oh, irmão, não tinha necessidade de eles matarem ninguém, véi. Só levou tudo, não tinha necessidade, porra. Mataram quatro pais de família”. No terceiro áudio enviado aos amigos, o homem diz que “queria muito viver para contar essa história”. Ele acrescenta que chegou a ir ao Instituto Médico Legal (IML), onde encontrou a família de um dos colegas mortos. “É doloroso, você não sabe o que falar”, finaliza.
Investigações
A polícia encontrou quatro dos cinco carros usados pelas vítimas. A Polícia Civil informou que o titular da Delegacia de Homicídios Múltiplos, Odair Carneiro, está investigandi o caso. Nenhum morador da comunidade Paz e Vida quis comentar o ocorrido.
A polícia ainda não sabe qual a relação entres as vítimas e os autores. “Ainda está tudo muito prematuro e preciso cruzar muitas informações”, disse o delegado Jesus Barbosa, responsável pelo levantamento cadavérico, sem dar mais detalhes. Os corpos foram encontrados ainda dentro da comunidade, num área de estrada de terra.
O perito médico Marcos Mousinho, do Departamento de Polícia Técnica (DPT), comentou o fato do suposto envolvimento de duas travestis e três homens no crime. “Sim, alguns policiais comentaram essa versão, mas, para a perícia de local de crime, não é relevante, mas a informação está sendo apurada pela Polícia Civil”, disse Mousinho.
De acordo com o perito, as vítimas não foram executadas onde os corpos foram deixados. Um rastro de sangue levou os peritos para um barraco, a cerca de 10 metros. Dentro do imóvel, de chão de barro e erguido por pedaços de madeira, no que seria uma sala, havia um fogão velho e poças de sangue. Mais ao fundo, um gambá morto sobre uma cama. Já nos fundos, poças de sangue, em posições distintas. “Foi aqui que eles foram torturados e mortos”, declarou Mousinho.
Suspeito foi morto
O suspeito de ser o mandante da chacina, o traficante Jeferson Palmeira Soares Santos, de 30 anos, foi morto no sábado (14). Segundo a família, que foi reconhecer o corpo no Instituto Médico Legal (IML), o crime teria sido ação de uma facção rival.
Isso porque receberam fotos e vídeos de Jeferson sendo agredido e morto no dia seguinte à chacina. Os homicidas de Jéferson fizeram questão fazer uma foto do rapaz rendido, com uma pistola apontada para seu rosto. Em seguida, gravaram um vídeo executando-o em um matagal escuro. Não se tem ideia de onde Jeferson teria sido morto. “Só recebemos as fotos e os vídeos”, disse a prima.
Além do avô do criminoso, Raimundo Palmeira, 78, o pai dele, o autônomo Carlos Alberto Soares, 65, e uma prima, que preferiu não revelar o nome, também estiveram no IML e confirmaram o envolvimento dele com o tráfico.
“Era trabalhador! Depois começou a se envolver, a ostentar, frequentar festa de paredão, postar foto com arma no WhattsApp”, contou a prima. “Ele começou a ficar famoso e ganhar dinheiro com os crimes. Aí subiu para a cabeça”, conta a prima.
Especula-se também sobre a morte da mulher de Jeferson, conhecida como Jaqueline, que teria sido assassinada antes mesmo do traficante, logo depois das execuções dos motoristas de aplicativos. “Essa era a segunda mulher dele. Tinha dois filhos, mas não eram dele”, contou a prima.
Esclarecimento da Uber e 99
Alguns parentes das vítimas estiveram no local, mas não quiseram falar sobre o assunto. Procurada, a 99 informou que está apurando o caso. Através de nota, a empresa lamentou profundamente a situação e diz que se solidariza com a família das vítimas. “A plataforma reitera que repudia veemente esse tipo de violência e está disponível para colaborar com as investigações da polícia”, afirmou. A assessoria da Uber confirmou que alguns dos motoristas faziam parte da plataforma, mas não deu dados individuais. A empresa afirmou em nota que também está ajudando as autoridades policiais na apuração do caso. “A Uber lamenta profundamente o crime brutal e chocante ocorrido em Salvador e se solidariza com os familiares e entes queridos das vítimas nesse momento de consternação”, diz o pronunciamento.
Protestos por segurança
No mesmo dia em que os motoristas de aplicativo foram encontrados mortos, a categoria saiu em carreta pedindo segurança e melhores condições de trabalho e o trânsito deu um nó na cidade na última sexta-feira (13). O horário mais crítico foi por volta das 17h, quando o grupo estava em três locais Avenida Tancredo Neves, Piedade, e região do Iguatemi.
Manifestação gerou congestionamento em pelo menos três regiões da cidade |
“Para a gente entrar no sistema é feita uma série de exigências, enquanto qualquer um pode ser passageiro. Precisamos de mais segurança para poder trabalhar e as empresas não podem ignorar isso”, disse o presidente do sindicato, Atila Santana.
(Foto: Gil Santos/CORREIO) |
A concentração no Iguatemi começou por volta da 16h30 e seguiu até às 19h30, quando eles saíram em carreta até se dispensar nas imediações do Salvador Shopping.
Duas manifestações aconteceram nesta segunda-feira (16). Uma na porta da Governadoria, no Centro Administrativo da Bahia (CAB), pela manhã, e outra na Avenida Tancredo Neves, que teve reflexos nas Avenidas Paralela e ACM.
Por volta das 9h desta segunda, eles se concentraram em frente à Assembleia Legislativa do estado (Alba) e seguiram em carreata para um encontro com o secretário da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), Maurício Barbosa. A estimativa é de que 5 mil motoristas participaram do ato.
(Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Pela tarde, a categoria de motoristas de aplicativo se reuniu para protestar em frente à sede da Uber em Salvador, na Avenida Tancredo Neves. A estimativa é que 800 motoristas participaram do ato, segundo o Sindicato dos Motoristas por Aplicativos e Condutores de Cooperativas do Estado da Bahia (Simactter).
(Foto: Tiago Caldas/CORREIO) |
Reinvidicações
A parada desta segunda feira (16) busca o atendimento a algumas reivindicações da categoria, principalmente no que se refere à identificação do passageiro e ao fim da chamada taxa de cancelamento estabelecidas pelas plataformas. “Isso faz com que o motorista seja obrigado a atender chamados em área de risco sob penalidade de punição pelas empresas”, declarou o presidente do Sindicato dos Motoristas por Aplicativos e Condutores de Cooperativas do Estado da Bahia (Simactter), Átila Santana.
“A Uber tem posturas que não condizem com essa propaganda de parceira que eles dizem. Hoje se eu cancelo uma corrida minha taxa de aceitação cai e eu posso ser bloqueado”, completa um dos diretores jurídicos do Sindicato, Ricardo Carvalho.
A categoria quer também a implementação de um dispositivo de reconhecimento facial e uma delegacia especializada para atender as ocorrências dos motoristas de aplicativos e os taxistas. “A delegacia é reivindicação antiga dos taxistas que estamos pleteiando também. Motoristas de aplicativos e taxistas estamos juntos na causa”, disse Átila.
Após reunião com a Uber, o presidente do Simactter, Átila Santana, informou que a empresa se comprometeu a atender todas as demandas de segurança exigidas pela categoria no prazo de duas semanas. A sede da 99 Pop estava fechada e sem funcionário
Segurança
A questão da segurança no exercício da atividade dos motoristas de aplicativo surgiu com força nas manifestações promovidas pela categoria desde sexta-feira (13), após a chacina que deixou quatro profissionais mortos no bairro da Mata Escura. Nos dois protestos realizados nesta segunda-feira (16), os motoristas exigem que as plataformas e a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) adote medidas que possam dar maior tranquilidade ao trabalho deles.
Em resposta ao CORREIO, a Uber e a 99, principais plataformas de viagens via aplicativo, disseram que já aplicam políticas de segurança antes, durante e depois das corridas. Em contrapartida, o Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT-BA) informou que, apesar de as empresas não se responsabilizarem pelos motoristas e os tratarem apenas como parceiros que utilizam sua tecnologia, o órgão abrirá inquérito para analisar as responsabilidades das plataformas com relação ao episódio brutal.
O que diz a Uber
Em nota, a Uber disse que a segurança é prioridade para a empresa e que suas diretrizes tiveram atualização no mês passado, com a novidade da verificação de documentos dos usuários e acréscimo do botão “Ligar para a Polícia”, que tem integração com forças policiais da região com compartilhamento automático da localização em algumas regiões.
Dentre as medidas, a Uber explica que antes de cada viagem, exige o CPF e data de nascimento do usuário que opta por pagamento em dinheiro. Os dados são verificados com a base do Serasa. Ainda conforme a empresa, essa novidade foi anunciada em julho deste ano como primeiro projeto entregue pelo Centro de Desenvolvimento Tecnológico instalado pela Uber em São Paulo, e que a companhia diz ser o primeiro da empresa na América Latina com foco em segurança.
Ao informar a opção de pagamento em dinheiro, o motorista recebe na tela do app a região do destino final e a nota do usuário do aplicativo antes que este entre no carro. A Uber disse que está em teste em Salvador e em diversas cidades do país a opção do aplicativo em que o motorista pode escolher não receber chamadas para viagens com pagamento em dinheiro.
Além disso, a Uber diz que vem utilizando no Brasil, desde o ano passado, o recurso de machine learning, uma técnica que usa algoritmos que aprendem de forma automatizada a partir dos dados e que bloqueia as viagens consideradas potencialmente mais arriscadas, a menos que o usuário forneça detalhes adicionais de identificação.
Atualizações
Também desde 2018, tanto o aplicativo do usuário quanto dos motoristas foram atualizados com o botão Recursos de Segurança, que reúne todas as funções de segurança da plataforma, que inclui poder compartilhar a localização e o tempo de chegada em tempo real com quem desejarem. Caso o usuário tenha um perfil familiar, cada vez que uma pessoa cadastrada neste perfil começa uma viagem, o usuário pode automaticamente acompanhar o percurso diretamente de seu celular.
A plataforma disse também que, durante cada viagem, tanto os motoristas parceiros quanto os usuários estão cobertos por um seguro da Uber para acidentes pessoais.
Como os passageiros e motoristas avaliam uns aos outros após a corrida, a Uber também tem o poder de banir qualquer um que esteja com uma média baixa de avaliações e que tenha comportamento inapropriado ou perigoso.
Se acontecer algo do tipo, os motoristas têm à disposição um número de telefone 0800 para registrar casos de emergência e solicitar apoio da empresa depois de terem comunicado às autoridades. O aplicativo da Uber permite ainda que solicitações de viagens sejam canceladas por motoristas parceiros sinalizando motivo de segurança quando não se sentirem confortáveis.
O que diz a 99
A empresa 99 também disse que tem a segurança como prioridade. Assim como a Uber, ela também mostra aos motoristas informações sobre o destino final e nota do passageiro, além de exigir CPF ou cartão de crédito. Tem em comum ainda o machine learning — que vasculha padrões suspeitos — e compartilhamento de rotas. A 99 diz que o aplicativo tem um mapeamento de áreas de risco e que o profissional pode escolher cancelar as corridas nestes casos.
Os carros cadastrados nesta plataforma, conforme garante a empresa, têm câmeras de segurança embarcadas e conectadas à sua central de segurança 24h, nos sete dias da semana. O kit segurança também um inclui, na tela do app, o compartilhamento das rotas em tempo real com até cinco contatos de segurança. Desde o aceite até a finalização das corridas, passageiros e motoristas são cobertos por um seguro contra acidentes pessoais de até R$ 100 mil.
O que diz a Polícia Militar
Procurada pelo Correio para explicar como busca garantir segurança no transporte de passageiros, a Polícia Militar informou que realiza ações específicas através da Operação Apolo, juntamente com as companhias de área, realizando abordagens preventivas e blitze constantes. A instituição acrescenta que, apesar de os veículos de aplicativo não apresentarem identificação visual externa, também são abordados pela PM da mesma forma, mas na categoria de carro comum.
O que diz o MPT
Para a procuradora Juliana Corbal, do Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT-BA), quando uma situação como a ocorrida em Salvador acontece, isto revela uma série de problemas não só da cidade, mas em todo o país com relação aos aplicativos. Ela cita que o MPT trabalha a questão da falta de segurança pública com vários trabalhadores, não só os que atuam em aplicativos e que o fato poderia ter acontecido, por exemplo, com motoristas que conduzem carros de transporte de valores e que são funcionários de empresas privadas.
“Mas, quando a gente olha a situação deles [motoristas de aplicativos], a gente vê que estão muito mais vulneráveis que outras pessoas. Alguns só dirigem à noite, em bairros sujeitos a esse tipo de risco e também estão sem a proteção trabalhista que outros trabalhadores têm”, explica a procuradora.
Como as plataformas não reconhecem os motoristas como seus funcionários, eles não têm acesso aos benefícios de assistência previdenciária. As empresas alegam que não há vínculo empregatício e que os profissionais são parceiros que utilizam a tecnologia para chegar aos clientes.
“Acontece que as empresas cobram em cima de cada corrida e elas deveriam dar segurança, independente do questionamento sobre vínculo empregatício ou não. Essas empresas deveriam olhar para os trabalhadores da sua plataforma de forma diferente. Elas estão lucrando muito através da exploração do trabalho humano e admitir isso é escolher que a gente quer mudar nossas formas da exploração do trabalho humano”, comenta.
A procuradora destaca ainda o fato de que o caso não tem motivação conhecida e que, como esses profissionais se enquadram numa situação de trabalho nova, isso gerou tensões, como por exemplo o desgosto em outra categoria: os taxistas.
“As empresas de app trabalham muito na questão do trabalho sobre demanda. Como tem várias pessoas querendo esse tipo de oportunidade de emprego. A gente viu que uma das vítimas era vigilante e, nas horas vagas fazia isso. É um pessoal que vive de bico. Qual a diferença? Se um desistir, vai ter outro e outro se submetendo a essa forma de controle pelo algoritmo e a gente vê uma subordinação por conta disso”, explica.
O órgão informou ao CORREIO que irá instaurar um inquérito para apurar a responsabilidade das empresas de aplicativos no episódio da chacina ocorrida em Salvador.